[POESIA] UMA CARNIÇA – CHARLES BAUDELAIRE

Publicado em
Lembra-te, amor, do que nessa manhã tão bela,
Vimos á volta de uma estrada?
– Uma horrenda carniça, oh que visão aquela!
Aos pedregulhos atirada; 

Com as pernas para o ar, qual mulher impudente
Tressuando vícios e paixões
Abria de maneira afrontosa e indolente
O ventre todo exalações;

Radiante, cozinhava o sol essa impureza,
A fim de tendo o ponto dado,
Cem vezes restituir á grande natureza
Quando ela havia ali juntado.

E contemplava o céu a carcaça ostentosa,
Como uma flor a se entreabrir!
E o fétido era tal que estiveste, nauseosa,
Quase em desmaios a cair.

Zumbiam moscas mil sobre esse ventre podre
De onde os exames vinham, grossos,
De larvas, a escorrer como azeite de um odre.
Ao longo de tantos destroços.

E tudo isso descia e subia em veemência
ou se lançava a fervilhar…
Dir-se-ia que esse corpo a uma vaga influência
Vivia a se multiplicar!

— Era um mondo a vibrar sons de música estranha,
Bem como o vento e a água em carreira
Ou o som que faz o grão que o joeirador apanha
E agita e roda na joeira,

E tudo a se apagar mais que um sonho não era,
– Esboço lento a aparecer
Sobre a tela esquecida, e que um artista espera
Só, de memória, refazer,

De uns rochedos, por trás, uma cadela quieta,
com desgostoso olhar nos via
espiando a ocasião de retomar, á infecta
ossada, o que deixado havia,

— E no entanto ás de ser igual a essa imundícia,
A essa horripilante infecção,
Astro dos olhos meus, céu da minha delícia.
Tu, meu anjo e minha paixão!

Assim tu hás de ser, oh rainha das Graças!
Quando depois da extrema-unção
Fores apodrecer sob a erva e as flores baças,
Entre as ossadas, pelo chão!
……………………………………………………………..

Diz então, lindo amor, á larva libertina.
Que há de beijar-te em lentos gostos,
Que eu a forma guarde, mais a essência divina,
Dos meus amores decompostos!

Trad.:Álvaro Reis

Uma resposta »

  1. Lindo! Simplesmente magnífico! Baudelaire é o melhor!

    Responder
  2. Lindo, lindo poema!

    Responder

Deixe um comentário